quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Resenha do Recital de Formatura em Composição Musical de Pedro R. Cardoso (08.12.15)

É muito difícil falar de uma apresentação de recital de formatura em Música – Composição, porque as obras são uma coletânea de peças do artista criadas ao longo de seus anos de formação. Mas é possível, em ocasiões não tão raras, captar certo espírito do artista que dá um norte às obras – a “essência anímica”. O recital de Pedro Cardoso foi uma dessas.
A peça inicial, Folclorismo, já apresenta um tom que se perpetua ao longo do recital, que remete a Oscar Wilde e sua frase: “a vida é muito importante para ser levada a sério”. Trata-se de uma interpretação de músicas populares como “Boi da Cara Preta” e “Ciranda Cirandinha” com pitadas de formalismos modernos atonalizantes. As obras do recital carregam uma jocosidade que Pedro Cardoso parece querer passar sem no entanto cair em lugares-comuns bem estabelecidos no ouvido popular. O sucesso dessa empreitada em alguns momentos é um pouco dúbio: o tom lúdico por vezes cai perante um medo artístico de querer se expor, isto é, um formalismo que parece servir de escudo bloqueando a comunicação lúdica com o público. Mas, assim como o silêncio é imprescindível para a comunicação, também o formalismo o é na música: a questão é o diálogo entre ele e a transmissão de coisas significativas, que é o que realmente marca as pessoas e as faz lembrar do que acabaram de ouvir. Pois falemos do marcante no recital:
O conteúdo de matriz sentimental, distante e parco na maior parte do tempo, ao surgir é tempestivo: está presente nas composições a cargo do Iandé Ensemble, intituladas Disciplina Humanística ­e Ricercata em Gestos. Trata-se de música intuitiva onde os músicos são “formadores de opinião” – muito mais do que em outros casos onde apenas se reproduz a partitura literalmente. Assim, é questionável se o dedo sentimental é da performance ou do compositor.
No conteúdo onde o dedo de Pedro Cardoso é mais palpável, vigora a mentalidade wildeana de pequenos prazeres, da grande perícia em trazer conteúdos que as pessoas normalmente fogem de abordar – como política e crítica culturala – para o concreto do entretenimento. Vemos lampejos do humor cáustico de The Onion e do “Elvis da filosofia” Slavoj Zizek na transfiguração de temas pesados para serem mais digeríveis, principalmente nas diversas obras intercaladas que constituem o álbum a ser lançado A Era dos Apps.
Chama também a atenção o uso de línguas falsas: em duas peças as temos. Elas apelam intelectualmente para duas coisas completamente distintas: contracultura e pós-modernidade. Certa vez um hippie – um mesmo, um americano dos anos 60 daquele estilo Woodstock – falou: “Não tenho palavras, eu tenho alma”. Hippies e beatniks associaram a linguagem ao sistema social que não lhes conferiam sentido (do mínimo ao pleno) de existência e viram um enfrentamento ao status quo de transmissão de conteúdos como necessário para a efetivação da vida. Brincar com línguas inventadas é, nesse âmbito, um instrumento contracultural, uma vez que convida a sair dos lugares-comuns dos idiomas que ocupam tanto o cotidiano quanto nossa consciência: a performance de Malu Engel em Lugares que Não Foram invoca a ascensão nietzscheana do espírito que, convertido em criança, passa a levar jogos a sério e encontra aí uma essência perdida pela modernidade. Por outro lado, há o deserto da pós-modernidade: assim como na transfiguração de temas pesados em conteúdos lúdicos d’A Era dos Apps, o uso de línguas falsas em Herr Francis parece querer simplesmente jogar diversão; ergue-se a questão de que o elemento contracultural seja mero wishful thinking de críticos, i.e. masturbação intelectual para agradar outros intelectuais. Fica no ar a questão: do que o artista está cienteb? O conteúdo da obra carrega de fato carga contracultural, mesmo após a constatação de que ela não será absorvida pelo público, ávido para viver as obras no âmbito puro e simples do entretenimento? E será que o artista tem essa visão sobre o público? Bem, se Oscar Wilde vive em Pedro Cardoso, o mistério está resolvido: bem-vindos ao deserto pós-moderno, aproveite a estada; clamar por algo além do deserto é clamar por dor de cabeça desnecessária.
Mas essa hipótese da jocosidade pura e simples não é muito satisfatória… afinal, algo motivou o artista a colocar referências a temas tão profundos em sua obra, não? O que será? Já dizia Bukowski que um intelectual diz algo simples de modo difícil e o artista algo difícil de modo simples. Se for desse jeito mesmo, podemos afirmar, no que tange o marcante: o recital de Pedro Cardoso é um atestado de arte, e que fique marcado assim.


a. Destacam-se uma crítica ao nacionalismo futebolístico brasileiro em E agora: futebol e um apontamento de como funciona o sistema político, “da história da Inglaterra à eleição para síndico do bloco” em Olaiela (que talvez tenha sido o ápice do diálogo entre música pop e crítica cultural/filosofia política).
b. Não que não seja uma pergunta um pouco capciosa, afinal atualmente costuma-se achar que a obra transmite significados independente do autor querer ou não. Mas não se deve ignorar o fato do compositor não ser (ao menos nesse caso) uma máquina que simplesmente compõe sem pensar no que está fazendo.

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